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Surf no lixo contemporâneo: a que ponto chegamos! E que mundo deixaremos de herança para Keith Richards?

sábado, 30 de abril de 2011

Onde está o Estado?


As duas grandes adversidades de Dilma


1) As novas questões do Brasil passam pela reordenação de sua política de longo e de curto prazos. Na época de Lula tivemos a passagem, com o olho bem aberto, de objetivos imediatos, marca de FHC dominado pelo neoliberalismo, para um tratamento estratégico dos dois termos temporais citados, definidos por um projeto nacional. O objetivo era sair do labirinto de políticas de duração exígua, concepção do setor financeiro, rumo a uma inserção do Brasil na ordem econômica da globalização. Um futuro mais claro à frente com uma novidade substancial: uma política econômica de melhoria da renda e do emprego. Fazia parte deste projeto a presença do país como um ator de média estatura na política externa, alvo que foi plenamente atingido, tanto que Lula se tornou a grande figura da política mundial em 2010.


2) É preciso ver que as ações na realidade externa são expressões do lado de dentro da sociedade, com uma dose de pimenta dada pelo Estado. O jogo dos grupos sociais tinha se alterado na arena de combates do Brasil durante a primeira década do século XXI. Uma força vital começou a desaguar no governo lulista através do apoio das classes menos favorecidas, por causa da nova formulação da política econômica. E esta força voluptuosa cresceu diante da articulação/desarticulação financeira e produtiva, sobretudo porque esta última área, insatisfeita com a imperiosidade das finanças, aderiu a um projeto mais produtivista, mais de acordo com a facção social que Lula representava. E o grande emblema dessa mutação foi José de Alencar, figura que revelou muito bem essa faceta, pondo uma garantia e um cimento entre a produção e os trabalhadores. Cabe destacar igualmente que as finanças perderam terreno, pois tiveram uma paralisia na sua aliança internacional/nacional por ocasião da crise de 2007. A divergência dos empresários, a associação capital produtivo/trabalho e o crescimento da figura da população transformaram o campo da ação política de Lula.


3) O tempo é algoz implacável dos homens e das sociedades. E vai alterando as suas configurações, uma vez que ele se opõe a si próprio. Como a água, toma a forma de outros recipientes, de outros copos, de outros cálices. Então, o mundo, assumindo a fisionomia do rio de Heráclito, muda de forma permanente. A consequência é que Dilma encontrou, após a eleição, uma dupla adversidade no plano de voo da nação. A primeira aparece no campo externo: o mundo apresenta uma enredada mundialização em tumulto. Aqui há uma acentuada presença ativa da China, acumulando triunfos políticos e econômicos, com uma estratégia nítida e insistente. Aqui há também um desequilíbrio americano, com ponteiros domésticos em desacerto, buscando fazer uma revisão dolorosa de sua política externa unilateral e militar, tentando barrar os revezes financeiros privados e públicos, e percebendo uma decadência produtiva e mercantil a exigir uma metamorfose tecnológica e empresarial. Ou seja, a geo-economia e geopolítica do planeta aquecem a temperatura dos conflitos. Desenha-se a figura de uma rota de futura bipolaridade, atravessada, Deus dirá se é verdade, por tintas e cores de múltiplas influências, pois a Índia, a Rússia e o Brasil e tantos outros, tratam de alterar suas posições relativas no conjunto internacional em movimento.


4) Dito de outra forma: Dilma está em face de uma outra etapa de uma nova ordem política e econômica mundial. Tem que ter cautela para agir. E para bem agir, há que pesar os caminhos retos, sinuosos, ou em ziguezague, o mundo não tem mais a cara da unipolaridade americana. Ele está mais complexo e mais à beira do precipício. Os quatro cavaleiros do apocalipse ainda estão cavalgando: crise financeira em desdobramento, mudança do tabuleiro dos conflitos políticos, retorno do movimento social para a ultradireita e ideologia selvagem dos cortes sociais.


5) Esmiuçando a segunda adversidade, que tem origem nas discórdias internas, vê-se que Dilma está diante de um quadro de luta social mais candente. O fogo do caldeirão já está aceso. Os banqueiros que estavam felizes, com FHC e com Lula, viram, no final do Lula II, as astúcias desse último. A política econômica escorada nos interesses dos bancos e do capital internacional tinha agora um novo sócio; sócio minoritário, de fato, mas novo sócio: as classes trabalhadoras e as deserdadas. Lula tinha feito uma manobra fantástica, com as sobras dos recursos dirigidos às finanças, achou uma janela entreaberta. E culminou por construir uma política coerente para as classes pobres (desde uma política de aumento real do salário mínimo, do programa Bolsa-Família até o começo de uma outra política de habitação). Hoje, estes passos elevaram as tensões sociais de maneira muito forte. Os bancos retornaram, junto com um novo suspiro das finanças internacionais, com o desespero da grande imprensa e de parte dos empresários produtivos ameaçados pela China, a forçarem uma política mais conservadora. Na verdade, o objetivo dos bancos é retornar e desenvolver uma política econômica de figurino financeiro. Em resumo: Dilma está diante desta onda de revival neoliberal, onda do Ocidente e onda brasileira.


6) Por sua vez, as classes trabalhadoras e setores marginalizados, da cidade e do campo, querem avançar. Mas seu desejo está mais para um desejo de melhoria de vida atual, ou seja, desejam novas e mais mercadorias — de moradias a carros — ou seja, um considerável e justo aumento do padrão de vida — e imediatamente. Parece não existir assim espaço, na hora presente, para uma correção de política na direção de uma maior socialização e para uma nova sociedade que seja mais igualitária, que tenha uma cultura menos banal, que tenha uma passagem para o longo prazo diferente da continuidade desse processo em vigor. Nesse sentido, a luta na sociedade se tornou mais aguçada que no tempo de Lula. Para alterar o rumo, há que traçar uma política que concilie os problemas de agora com a política de futuro. Mas as finanças querem acabar com a política e a estratégia de longo alcance, pois a eles só interessam os ganhos do momento. Esse festival de aporte de capitais internacionais é o que interessa, pois é aí que vai o seu objetivo rentista.


7) Para encarar essa dupla adversidade, Dilma tem que contar com o Estado. E a pergunta é: onde está o Estado? No final do Lula II, como consequência inclusive da ação do PAC, o curso estatal se dirigia para uma maior intervenção na economia. Mas o combate das forças sociais tem detido o seu crescimento, já que ele esbarra na resistência dos dominantes e nas múltiplas questões que se agravam no país. Infraestrutura pública (logística e urbana), financiamento do investimento, formação de quadros burocráticos, decomposição do quadro político-partidário, retorno da pressão financeira, etc., etc. Dilma, nesse ponto, está dando passos cautelosos, ao menos na minha consideração. Há uma floresta enevoada na sua frente. Daí a dificuldade de estabelecer, através de uma análise precisa e de uma inteligência esperta, uma estratégia coerente, articulando o longo e curto prazos. E essa observação é nítida, uma vez que a estratégia antiga, a dos tempos de Lula, tem que ser alterada. E Dilma sabe disso e não pode errar; a pressa pode levar a uma terceira adversidade, o atraso do Brasil em relação aos seus parceiros e ao avanço social interno. Há ciladas por toda parte. Na política econômica presente, por exemplo, a gente constata juros elevados, taxa de câmbio em posição contrária à produção, uma desindustrialização inquietante, uma inflação mundial que, por enquanto, está controlada, mas que está aí com a máscara da ameaça.


8) A conclusão: o Estado não conseguiu dar um salto próprio, nem conseguiu realizar uma parceria hegemônica com o setor privado, capaz de atuar no interesse nacional e não no interesse dos grupos particulares. Por isso, não tem forças para poder controlar o câmbio, nem definir positivamente a taxa de juros, nem ter uma política econômica global, etc. O governo de Dilma está agindo cautelosamente para não perder os pontos conquistados. Sente-se, portanto, que o Estado não mudou de patamar. Seja porque as relações das forças sociais nacionais e internacionais não permitem; seja porque o governo ainda está se instalando; seja porque ainda está enfraquecido pela ideologia neoliberal que teve vigência desde os anos 90; seja porque, na luta internacional, o modelo chinês de presença do Estado não encontrou ainda caminho de expansão; seja porque é preciso novamente acumular forças para tentar progredir para uma nova organização estatal, tanto para aumentar as conquistas sociais internas como para encarar o pesado jogo das disputas entre os diferentes Estados. Por qual razão seja, inclusive levando em conta todas juntas, o Brasil de Dilma está em face das adversidades descritas e da necessidade de rearticular uma política e uma estratégia do dia a dia com o longo prazo. Logo, precisa pesar as forças em contenda e vislumbrar com clareza as oportunidades que surgirão. Por isso, o gesto político fundamental nesta hora indefinida é cautela. Cautela por tática e não por medo. Cautela para dar o passo certo no momento adequado. Está aí exposto o nervo frontal do desafio.


Artigo do economista Enéas de Souza. Texto publicado originalmente no blog EconoBrasil.

3 comentários:

Anônimo disse...

Preciso não é Cristóvão? Dá a dimensão exata do desafio...
Abraço
André

Anônimo disse...

Resumindo conversa fiada não modifica a realidade. E a realidade é que a vaca tá indo pro brejo. E agora nem podem culpar o demônio de sempre ou seja o FHC.

Nelson disse...

Feil. Como não foi publicado este meu comentário, que impostei ainda na segunda-feira, se não me engano, - não sei se houve algum problema técnico - torno a escrevê-lo.

Pode-se culpar o FHC, sim, meu caro anônimo.
O governo FHC foi, possivelmente, o mais deletério que já se estabeleceu neste país. A sua adesão total ao neoliberalismo deixou poucas opções à total genuflexão do Brasil ao grande capital, nacional e estrangeiro, em detrimento dos interesses do conjunto da população. O seu Plano Real foi, também, o mais deletério já aplicado neste país. Com o Plano, o governo FHC fez um acordo tácito com os brasileiros: em troca da tal estabilidade de preços, FHC atacou o pouco de estabilidade que os trabalhadores tinham (previdência, direitos trabalhistas) ao mesmo tempo em que vendeu/privatizou/doou quase 70% do patrimônio pertencente ao povo.
Essas privatizações, realizadas totalmente de acordo com a cartilha do duo FMI/BIRD, acabaram por minar quase por completo a capacidade do Estado em intervir na economia. A receita advinda dos serviços e setores privatizados não poderia mais ser considerada como recursos de que o Estado dispõe para dar um rumo à economia; a receita foi engordar os lucros de um pequeno punhado de grandes empresas privadas, nacionais e estrangeiras. Não à toa, a remessa de lucros e dividendos para o exterior observou um crescimento exponencial desde o governo FHC. Segundo informes, chegou, em 2010, à casa dos R$ 70 bilhões; dinheiro de que o país, desesperadamente, precisa. Veja-se o caos em que se encontra a saúde pública, os problemas graves da educação pública e a quase inexistência de política para algo que o próprio nome já diz, básico, o saneamento básico.

É certo, meu caro Anônimo, que o governo Lula deixou de seguir o rumo esperado, e parece que também o de Dilma não seguirá, frustrando em grande medida as expectativas que se formaram com sua eleição. Porém, não podemos, de forma alguma, esquecer o legado destruidor que nos deixou o governo do "príncipe dos sociólogos".

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