Você está entrando no Diário Gauche, um blog com as janelas abertas para o mar de incertezas do século 21.

Surf no lixo contemporâneo: a que ponto chegamos! E que mundo deixaremos de herança para Keith Richards?

terça-feira, 11 de dezembro de 2007


Por que o PT não foi, não é e jamais será social-democrata - parte 2

Um fenômeno exclusivamente europeu

É preciso entender a social democracia como um fenômeno puramente europeu. Os partidos social-democratas são frutos de uma conjuntura histórica singular, flores de uma geopolítica particular. Resultam de um processo de consolidação da ordem capitalista industrial, egresso da vencida aristocracia. Somente a Europa ocidental pode apresentar essa estufa social, com semelhantes resultados.

O operariado cresce enraiza-se e faz-se classe com uma sensível consciência de si: não se reconhece na decadente aristocracia, não se reconhece na ascendente burguesia patronal. Identifica-se nos movimentos sindicais e nos nascentes partidos socialistas e anarquistas. Como refere Marx, de classe em si, torna-se classe para si, embora com os desvios institucionais que veremos.

Como o anarquismo rejeita a via parlamentar, não há alternativa senão identificar-se com as instituições que estão conseguindo repartir o excedente e logrando melhores condições de trabalho. As conquistas econômicas do movimento sindical trazem dividendos eleitorais para os partidos social-democratas e vão solidificando uma cultura operária integrada à ordem burguesa.

Temos, portanto, elementos de natureza econômica, política e ideológica que modelam uma classe social com nitidez e contorno. Sabe-se onde tudo começa e não se desconhece onde tudo se limita. Uma diferença marcante entre os que permaneceram marxistas e os revisionistas é que, se para aqueles não há limites, para os renegados o limite máximo é a democracia liberal burguesa, do qual jamais ousarão ultrapassar as fronteiras da terra proibida.

Contudo, há um território político-institucional social-democrata, que o senso de oportunidade dos seus teóricos soube ocupar; não para servir à revolução, mas para satisfazer as necessidades imediatas da classe operária. É de enfatizar que a integração operária ao sistema é uma construção política da praxis social-democrática. O trabalhador – como classe – foi integrado, como efeito da política de compromisso de classe da Segunda Internacional. A dinâmica da formação de classes é um moto-perpétuo de lutas sociais. As classes sociais são continuamente organizadas, desorganizadas e reorganizadas (Przeworski, 1989). Destes três advérbios, a social-democracia soube ser responsável pelo primeiro e o terceiro. Daí o seu êxito.

Os fundamentos para o projeto social-democrata, seriam: a) uma poderosa organização sindical de trabalhadores; b) uma burguesia forte e autônoma em relação ao Estado, com capacidade crescente de investimentos. Uma acumulação burguesa e uma repartição proletária. Essa repartição se faz pela via sindical, na negociação salarial; e pela via eleitoral, através do controle do Estado, com políticas redistributivas de bem-estar social e cultural.

Portanto, são condições de acumulação econômica combinadas com condições estáveis de política institucional, seja no Estado, sejam nos sindicatos. Onde o instituto da representação não é atravessado, transfigurado em aventuras populistas temerárias. O modelo da social democracia está baseada em instituições representativas fortes e legítimas, onde as mediações são operadas por uma luta de classe institucionalmente filtrada pelo movimento sindical e o processo trivalente partidário-eleitoral-parlamentar. Esses filtros institucionais são anteparos do Estado burguês. Tem a finalidade de condensar e resfriar a lava quente das demandas, insatisfações e revoltas do movimento social em bruto. Ao Estado não chega a revolta bruta; mas a demanda líquida, classificada, filtrada, taxada, passível de negociação. Nesse processo ocorre a alienação ou a supressão de direitos. O filtro das instituições, mesmo as instituições de origem operária, como os sindicatos e partidos, alienam (surrupiam) a natureza e a qualidade original das lutas do genuíno movimento social. Exaurem as lutas do seu conteúdo original para vertê-las em representações transfiguradas de sentido. Essa alienação de direitos assegura a legitimidade do sistema em auto-reproduzir-se garantindo a manutenção da ordem, do progresso, da igualdade e da liberdade. Ainda que representações fracionárias de ordem (que não é para todos), de progresso (que não é para todos), de igualdade (que trata igualmente os desiguais), e da liberdade (em abstrato). A síntese dessa equação racionalizante é a democracia parlamentar, uma representação de si própria; um fragmento ilustrativo de participação popular alienada. Um caco sistêmico-ideológico.

A democracia para ser tolerada precisa ser mitigada, fracionada, representada. A democracia vira um instrumento racionalizante, onde o resultado é nem o reino da liberdade, nem o reino da razão.

O modelo populista, que é o que está mais próximo de nós, tentou um desenvolvimento nacionalista autônomo e redistributivo baseado no movimento trabalhista, de resto malogrado, porque a burguesia já estava siderada pelo imperialismo e escarneceu do compromisso de classes; é uma representação abstrata, onde não existem mediações por que os líderes operam direto com o povo, indeterminadamente, povo. Na social democracia existe a categoria classe. No populismo subsiste a categoria genérica povo. A social democracia prosperou em uma formação social de pré-abundancia. O populismo é uma contingencia política de formações sociais pré-desenvolvidas, onde o trabalhador é desorganizado por que pouco numeroso, e pouco numeroso por que é débil o desenvolvimento das forças produtivas.

Como se vê, o modelo social-democrata exige uma complexa rede de injunções favoráveis que a história não oferece na feira livre, como peixe fresco.

A social democracia lembra o que se chama opção faustiana: o de um sobrinho jovem e operoso, de nome Fausto, que se ofereceu para trabalhar nas indústrias do tio burguês, esperando que o testamento deste lhe reconheça algum dia a prudencia e a cordura. Só que para o testamento ser aberto o tio precisa antes morrer, e este ainda está vigoroso e saudável, enfrenta periódicas crises, mas recompõem-se novamente. E como o sobrinho não anda nada bem, pode sucumbir antes!

Kautski teve uma produção teórica muito grande até morrer em 1938, então com 84 anos. Um ano antes, em 1937, ainda publica Os socialistas e a guerra, em Amsterdan, onde se refugiara do nazismo. Privou com Marx, com Engels, com Lênin, com Rosa. Não aprendeu nada com eles. Trilhou um caminho próprio, o inverso do caminho daqueles com quem se relacionou.

Em 1887, publica um trabalho cujo título era As doutrinas econômicas de Karl Marx. A propósito deste livro, Paul Mattick relata que antes de publicá-lo, Kautski havia conversado com Engels sobre a teoria do valor. Este para Kautski, subsistiria numa economia socialista, com a condição de que o valor fosse conscientemente restabelecido e não fixo pelo jogo das leis cegas do mercado, como no capitalismo. Engels contrapôs ser o valor uma categoria estritamente histórica e que, aparecido com o capitalismo, com ele viria a desaparecer. Kautski aceitou o parecer neste trabalho, onde o valor é considerado uma categoria histórica. Entretanto, em 1922, ao publicar A revolução proletária e o seu programa, lá estão reintroduzidos, no seu esquema de sociedade socialista, as noções de valor, mercado e dinheiro e a produção mercantil.

No esquema kautskiano, de 1922, temos duas hipóteses, mutuamente excludentes: 1) ou temos a eternização das categorias valor, mercado e dinheiro e as derivações multitudinárias da alienação; 2) ou temos o socialismo sem mercado, sem valor, sem sobretrabalho. A fusão das duas hipóteses é inviável, ou melhor, viabilizou a degenerescência stalinista na URSS: "socialismo" com alienação do trabalho e do Ser.


Amanhã, a parte final deste artigo. A primeira parte foi postada ontem. Ver abaixo.

2 comentários:

Carlos Eduardo da Maia disse...

A integração do operariado no contexto classe média não é fenômeno puramente europeu. Isso ocorre em qualquer país desenvolvido e em desenvolvimento deste vasto mundo. O operário australiano, neo zelandês, chileno, argentino, americano, canadense, mexicano, japonês, chinês, sul coreano, tailandês está se incorporando -- cada vez mais em progressão geométrica -- ao contexto classe média que dissipa a alma e espírito revolucionário e leva o cidadão, o operário, o pequeno servidor a aderir ao ideal da social democracia e seus reflexos reformistas para melhorar os serviços públicos de um Estado -- que nunca vai fenecer.

Anônimo disse...

kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk
O Maia é um liberal socialista mesmo. Divertido mesmo.

Contato com o blog Diário Gauche:

cfeil@ymail.com

Arquivo do Diário Gauche

Perfil do blogueiro:

Porto Alegre, RS, Brazil
Sociólogo